Qualificar o olhar para o fenômeno da criança fora da escola e entendê-lo como uma questão multifatorial são os dois elementos primordiais para começar a resolver o problema. Essa foi a reflexão trazida e embasada pela professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em Serviço Social Miriam Krenzinger durante o terceiro encontro presencial do Programa de Formação em Políticas Públicas e Intersetorialidade para garantia dos direitos das crianças e adolescentes, promovido pelo Projeto Aluno Presente, com o apoio do British Council e Newton Fund, na última quinta-feira (25).
“Primeiro, precisamos qualificar o nosso olhar para o fenômeno da criança fora da escola e entendê-lo como uma questão não apenas econômica e/ou individual, mas multifatorial. Para isso, precisamos construir permanentemente um olhar crítico sobre a situação e desenvolver um diagnóstico qualificado do problema”, defendeu.
Treinar o olhar e limpá-lo de preconceitos e estereótipos foi o convite lançado por Miriam ao público, formado majoritariamente por gestores públicos atuantes no município do Rio de Janeiro. O grupo participou ativamente da exposição da pesquisadora, com observações oriundas de suas experiências cotidianas.
Segundo ela, é vital trabalhar no campo com responsabilidade ética de realizar pesquisas e consultar os dados para construir um diagnóstico fiel a cada situação, sem resolvê-la a partir de padrões ou saberes convencionados. “É preciso estudar e pesquisar os dados regionalizados, constantemente, além do amparo teórico e de uma visão sistêmica do problema, pois isso dará munição para uma análise crítica e um enfretamento eficaz das demandas sociais. Em hipótese alguma essa situação tem apenas uma explicação, uma única razão de ser”, afirmou Miriam.
Ela resgatou ser o direito à educação algo recente em nossa sociedade e garanti-lo requer não só a superação de fatores socioeconômicos como também uma transformação cultural da sociedade, que ainda precisa incorporar novos códigos e valores. “O direito à educação é um processo de lutas e de muitas disputas no cenário das políticas de direito em nível internacional, que passa a ser afirmada na década de 60 do século XX com nas declarações e convenções de diretos humanos e diretos das crianças e dos adolescentes”.
Superar a questão da criança fora da escola será somente possível se houver um trabalho articulado em rede para que cada setor que torna a criança vulnerável à infrequência seja cuidado, que cada agente público possa estar comprometido com a parte que lhe cabe e que a criança e a família não sejam responsabilizadas pelo fracasso. “A universalização do acesso trouxe uma infinidade de demandas sociais para a escola enfrentar, e ela não estava preparada para tal. Cada aluno traz consigo uma série de expressões da questão social que vai afetar o seu rendimento e a sua permanência na escola. Manter essa criança frequente na escola requer garantir outros diretos sociais”.
Miriam é também uma das pesquisadoras do Projeto Aluno Presente e compartilhou com o grupo dados e percepções que foram colhidos pelo projeto ao longo dos quase últimos três anos. Um dos fatores que mais vem contribuindo para a infrequência são as famílias nômades, que ao serem abordadas pelo projeto, declaram a mudança frequente de domicílio, motivada majoritariamente pela mudança de Estado ou por necessidade de deslocamento do provedor daquela família de região dentro da cidade por necessidades profissionais, o que acaba descontinuando o processo de aprendizagem da criança.
Outro elemento que aparece é a vulnerabilidade social das famílias, como miséria, doença ou dependência química, com atenção para relatos da dificuldade em acessar soluções de órgãos públicos para sanar tais problemas. Também surgiram vários casos que acabam por evidenciar a ausência de responsável na residência, sendo a responsabilidade, muitas vezes, assumida pela criança mais velha, que, por consequência, deixa de estudar para cuidar da casa e dos demais. Apesar de estar latente no campo, a questão de muitos territórios do Rio de Janeiro serem dominados por facções criminosas não aparece, explicitamente, como motivo justificado pelas famílias abordadas pelo Projeto Aluno Presente.
A falta de documentos, apesar de não ser um impeditivo legal para estudar, acaba por afastar as famílias da escola por falta de informação ou capacidade de resolução do problema. Em alguns casos, famílias mais vulneráveis socialmente ou com apenas um responsável não conseguem resolver tais pendências nos horários disponíveis pelo órgão público.
A segunda parte do curso foi facilitada pela professora Paula Kapp, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Como nos demais encontros, os participantes foram divididos pelas microrregiões onde atuam para a identificação das particularidades de cada área.
Eles foram convidados a trazer casos concretos para serem resolvidos e articulados nos encontros e a pensar nos limites e possibilidades para tratar esses temas. “Espero que essa experiência suscite propostas para a organização de uma política pública capaz de ser aplicada pelos gestores públicos que enfrentam o problema da criança fora da escola em todo o país”, concluiu Miriam.